Comentário

Titularização: rapidamente<br>e em força!

Miguel Viegas

Custa usar como tí­tulo esta ti­rada de má me­mória, mas é se­gu­ra­mente aquela que me­lhor ca­rac­te­riza o que se passou na pas­sada se­mana no Par­la­mento Eu­ropeu, na Co­missão dos As­suntos Eco­nó­micos e Mo­ne­tá­rios. No dia 8 de De­zembro – sério can­di­dato ao dia mun­dial da am­nésia – a grande «co­li­gação» do PPE (di­reita) e da so­cial-de­mo­cracia eu­ro­peia aprovou um con­junto de di­plomas des­ti­nados a re­lançar «ra­pi­da­mente e em força» a ti­tu­la­ri­zação, mos­trando uma total sub­ser­vi­ência aos grandes lóbis fi­nan­ceiros que têm vindo a fazer uma enorme pressão para a apro­vação destes di­plomas.

A ti­tu­la­ri­zação con­siste numa es­pécie de al­quimia fi­nan­ceira que reúne cré­ditos de­tidos pela banca através da con­cessão de em­prés­timos, cri­ando novos pro­dutos fi­nan­ceiros que de­pois lança no mer­cado. Num exemplo sim­ples e ilus­tra­tivo, ima­gine que um in­di­víduo A em­presta um de­ter­mi­nado mon­tante a duas pes­soas B e C, acer­tando com estes um plano de re­em­bolso dos em­prés­timos. A ti­tu­la­ri­zação con­siste na reu­nião destes dois fluxos de pa­ga­mentos e na venda por parte de A deste pro­duto fi­nan­ceiro a um quarto in­di­víduo que pas­sará a re­ceber as pres­ta­ções de B e C.

Num exemplo sim­ples, esta prá­tica até pode pa­recer inócua. No en­tanto, a ver­dade é que a cri­ação e cir­cu­lação destes pro­dutos es­teve na base da grande crise fi­nan­ceira de 2008 cujos efeitos ainda hoje per­duram na eco­nomia. As ra­zões são fun­da­men­tal­mente duas. Em pri­meiro lugar, existe um con­flito de in­te­resse óbvio entre quem lança estes pro­dutos e quem in­veste neles. Ou seja, o que acon­teceu na prá­tica foi que a banca usou a ti­tu­la­ri­zação para limpar os seus ba­lanços, vendo-se livre do cré­dito mal pa­rado e sem a mí­nima pre­o­cu­pação com os in­ves­ti­dores a quem vendia estes pro­dutos. Tudo isto contou com a cum­pli­ci­dade cri­mi­nosa das agên­cias de ra­ting. Sa­bemos hoje que tí­tulos fi­nan­ceiros clas­si­fi­cados como AAA (no­tação má­xima) con­ti­nham, como ac­tivos sub­ja­centes, cré­ditos imo­bi­liá­rios de alto risco. Em se­gundo lugar, esta prá­tica, como fa­cil­mente se com­pre­ende, não acres­centa nada de real, apenas cria e mul­ti­plica va­lores pu­ra­mente fic­tí­cios a partir de um mesmo ac­tivo sub­ja­cente. Ou seja, a ti­tu­la­ri­zação au­menta de forma ex­po­nen­cial o risco sis­té­mico, os efeitos de con­tágio (efeito «do­minó») e am­plia de forma des­me­su­rada o im­pacto das crises fi­nan­ceiros. Foi pre­ci­sa­mente o que acon­teceu em 2008.

Mas pelos vistos nada disto im­pres­siona os de­pu­tados do PE que apro­varam uma ver­da­deira aber­ração fi­nan­ceira à qual deram o pom­poso nome de «Ti­tu­la­ri­zação Sim­ples Trans­pa­rente e Es­tan­dar­di­zada». Ig­no­rando tudo o que se passou na úl­tima crise fi­nan­ceira e re­cu­sando ouvir os múl­ti­plos apelos de eco­no­mistas e or­ga­ni­za­ções, o Par­la­mento Eu­ropeu aprovou um con­junto de textos le­gis­la­tivos que por um lado pre­tende re­gular esta de­linquência fi­nan­ceira, e por outro, dando por ad­qui­rida esta ope­ração de re­a­bi­li­tação da ti­tu­la­ri­zação, di­mi­nuindo ainda as exi­gên­cias em ma­téria pru­den­cial (ní­veis mí­nimos de ca­pital para com­pensar even­tuais perdas)!

Os de­pu­tados do PCP po­si­ci­o­naram-se contra a exis­tência destes pro­dutos fi­nan­ceiros, des­mon­tando um a um todos os ar­gu­mentos que apre­sen­tavam a ti­tu­la­ri­zação como ne­ces­sária e obri­ga­tória para re­lançar a eco­nomia e me­lhorar o fi­nan­ci­a­mento às PME. De­mons­trámos que mesmo estes re­gu­la­mentos, estes pro­dutos eram tudo menos sim­ples e trans­pa­rentes. Basta uma sim­ples lei­tura su­per­fi­cial do re­gu­la­mento para se per­ceber da com­ple­xi­dade e da opa­ci­dade com que estes pro­dutos são mon­tados e ava­li­ados, com ca­te­go­rias de risco di­fe­ren­ci­adas de­ter­mi­nadas pela ins­ti­tuição emis­sora, e em claro be­ne­fício pró­prio. Ficou claro que as PME não iriam be­ne­fi­ciar em nada porque a es­ma­ga­dora mai­oria dos pro­dutos ti­tu­la­ri­zados provêm de em­prés­timos imo­bi­liá­rios ou do cré­dito ao con­sumo. Em con­tra­par­tida, os grandes grupos fi­nan­ceiros serão se­gu­ra­mente os grandes be­ne­fi­ciá­rios destes passos, o que de­monstra mais uma vez a quem serve e para que serve a União Eu­ro­peia.

Com a re­a­bi­li­tação ins­ti­tu­ci­onal das ope­ra­ções de ti­tu­la­ri­zação que es­ti­veram na origem da ac­tual crise fi­nan­ceira ini­ciada em 2008 com a fa­lência do Lehman Brothers, ver­da­deira es­pe­ci­a­lista na ma­téria, vamos as­sistir a uma nova ace­le­ração do pro­cesso de fi­nan­cei­ri­zação da eco­nomia, com os bancos a as­su­mirem riscos ina­cei­tá­veis na con­cessão de em­prés­timos, con­tri­buindo assim para novas e cres­centes bo­lhas fi­nan­ceiras. O que a eco­nomia pre­cisa não é se­gu­ra­mente de mais en­ge­nharia fi­nan­ceira que sus­tente a eco­nomia de ca­sino. O que a eco­nomia pre­cisa é de um sis­tema ban­cário forte e ali­nhado com es­tra­té­gias de de­sen­vol­vi­mento que tragam mais bem-estar às po­pu­la­ções e aos tra­ba­lha­dores. Pela parte do PCP re­a­fir­mamos que só o con­trolo pú­blico sobre o sis­tema fi­nan­ceiro po­derá trazer esta es­ta­bi­li­dade e este ali­nha­mento.




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